3 de set. de 2015

Conto: "Dorotéia e o médico cubano"


"Dorotéia e o médico cubano"

  Dorotéia não estava se sentindo bem. Palpitações estranhas no peito, tonturas e fraquezas passaram a lhe incomodar de forma súbita, sintomas que roubavam boa parte de sua preocupação. E a preocupação, quando não compartilhada, atinge dimensões exponenciais. Ela morava só, pois foi assim que escolheu viver sua vida até então, após ser abandonada no altar diante de muitos convidados. Aquela humilhação na cerimônia do seu próprio casamento martelava sua mente durante quinze longos anos, e ela abdicou de qualquer contato amoroso, pois sua experiência traumática deixou sequelas marcantes.

 Trabalhava numa repartição pública, era amarga, mal-humorada e vestia-se de uma forma excessivamente recatada, como quem não quisesse chamar a atenção de nenhum homem, exatamente para não correr o risco de apaixonar-se novamente. E foi vestida desta forma que ela se dirigiu ao Postinho de Saúde do bairro, onde atendia o Dr. Ramón Julio Gonzáles. Ele era cardiologista formado em Havana, mas no Brasil, exercia função de Clínico Geral através do Programa “Mais Médicos”.

   Doroteia falou dos sintomas, e o médico anotou tudo minuciosamente. O doutor tinha boa aparência, e sua voz grossa com sotaque portunhol dava-lhe verdadeiras características de “Latin Lover”. Parecia um Julio Iglesias de jaleco branco. Porém, a paciente não havia notado a atenção diferenciada que o cardiologista lhe dispensava. Quando recebeu a receita, observou que não havia prescrição medicamentosa alguma, apenas a palavra “vinho” e o número de um telefone celular. Pensou que o médico fosse louco, mas também lembrou que um cálice de vinho ao dia faz bem ao coração, e que o tal número de celular, pudesse ser de alguma conceituada adega.

   Telefonou para o número indicado, e ao se identificar, ouviu um sotaque portunhol recitando uma poesia ousada, que fez tremer suas pernas e acelerar os batimentos cardíacos. Aceitou o convite para tomar um vinho com o médico, e muitos outros cálices da bebida foram degustados a partir daquele momento, na companhia do doutor. Doroteia passou a se vestir de uma forma feminina, valorizando suas formas até então ocultadas, e um sorriso maroto passou a fazer parte do seu semblante. O atendimento prestado na repartição pública em que trabalhava mudou “da água para o vinho”, rendendo-lhe uma promoção profissional.

    Às vezes, um coração pode ficar dolorido por conta de veias e artérias obstruídas. Mas em muitas oportunidades, a dor da solidão pode ser causada por corações blindados. Dorotéia fazia parte do segundo grupo de cardiopatas, e a partir daquela paixão arrebatadora, percebeu o mal que fazia para si mesma ao resguardar-se com tanto zelo...


*O Eldoradense

2 comentários:

  1. Anônimo19:11

    Elementar meu caro, o AMOR ou até mesmo a PAIXÃO pode mudar as pessoas e de certa forma salva las.

    - Talvez eu tivesse esperança de (...) que pudesse amar só a mim e nada mais. - Isso não existe (...), você sabe disso. Ninguém deve amar uma pessoa mais que tudo, mais que a si mesmo. Isso é autoanulação!

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  2. Anônimo12:07

    Que lindo...

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Comentário: "O tio França foi uma vítima"

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