"Perspicácia e persistência"
Na sala meio que
sombria do seu escritório, o velho Amílcar já estava exausto pelo processo
seletivo que realizava para chefe de cozinha do seu grande restaurante. O homem
era um observador nato, e fazia questão de ele mesmo realizar suas entrevistas,
analisando minuciosamente cada detalhe dos candidatos: jeito de falar, vestir,
aparência, nível cultural, e principalmente, perspicácia e persistência. O
sujeito que ocupava o cargo até então, Donato, era mais que funcionário, era
seu braço direito na condução do empreendimento. Amílcar poderia fazer suas
viagens constantes à Europa sem medo, porque Donato era versátil, dando conta
também dos detalhes administrativos do restaurante. Mas o antigo chefe tinha um
talento só dele, e fora convidado para trabalhar em um importante restaurante
em Paris. Amílcar lamentou perder aquele funcionário tão eficiente, mas
compreendia que era justo que Donato ambicionasse novos desafios.
Durante aquele
cansativo dia, foram analisados mais de vinte candidatos, e ante os olhos de
Amílcar, nenhum digno de ser o “novo Donato”. Se necessário fosse, prolongaria
as entrevistas para o dia seguinte, até encontrar quem preenchesse todos os
requisitos. De certa forma, a aparência austera e firme do velho Amílcar talvez
pudesse intimidar os postulantes ao cargo, ou talvez o entrevistador fosse
demasiadamente exigente. Foi neste final de dia, quase que na hora do
crepúsculo que chegou ao escritório um sujeito de estatura mediana, olhar
sereno e aparentemente certo dos seus objetivos. Firmino causara boa impressão
só pelo jeito com que abriu a maçaneta da porta, segundo os olhos atentos do
velho Amílcar.
Após questionar
sobre currículo, pretensões salariais e tantas outras coisas importantes para o
entrevistador, Amílcar disse:
- Firmino, você
parece ser um bom candidato. Veste-se bem, possui bom currículo, é articulado e
parece ter boas noções de administração. Mas antes de encerrar a entrevista,
vou te fazer um pedido...
- Qual, senhor Amílcar?
- Minha esposa
disse, no começo do dia, que quer preparar um salmão para o jantar. Quero que
use seus conhecimentos gastronômicos para comprar o melhor peixe que encontrar
no supermercado, há quinze quadras daqui. Para ir até o supermercado, você vai
usar o meu carro, um veículo vinho que está parado no pequeno estacionamento do
prédio.
O que parecia uma
tarefa simples, na verdade era um teste, que fora feito com todos os outros
candidatos durante o dia. Todos eles voltaram em menos de cinco minutos,
alegando que as chaves não abriam as portas do carro vinho parado no
lugar, frustrando Amílcar. Vinte minutos se
passaram, e Firmino chegou com o belo salmão e as chaves do carro. Amílcar
olhou o peixe, aprovou a escolha e perguntou:
-Você conseguiu
abrir as portas do carro vinho?
-Não. Na verdade,
eu tentei, mas não consegui. Porém, percebi que ao lado do carro vinho havia
um veículo branco, e tentei abri-lo. Deu certo.
-Mas eu não havia
lhe dito que meu carro era vinho?
-Sim, mas como o
senhor queria que eu comprasse um salmão, deduzi que estava se referindo ao
vinho branco, ideal para o acompanhamento de peixes, e não ao vinho tinto...
-Parabéns
rapaz! Você está contratado! – Disse o
satisfeito e exigente Amílcar.
Em tempos difíceis,
muitos reclamam da falta de oportunidades, mas talvez estejam presos ao óbvio e
ao comodismo, sem qualquer lampejo de criatividade. Com um pouco de perspicácia
e persistência, as portas certamente se abrirão. Foi o que aconteceu com o
esperto Firmino...
* O Eldoradense
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