"Maria Ofélia"
Ele estava naquele
leito hospitalar há mais de um mês. A doença incurável havia lhe tirado a
vitalidade, o viço no olhar e as esperanças. Nada mais o consolava, nem mesmo a
TV no quarto, muito menos o bom tratamento dos funcionários da Santa Casa de
Misericórdia. Aliás, misericórdia era o que ele mais precisava, pois seu
sofrimento já era tão cruel quanto desumano. O último prazer era a leitura, que
foi interrompida por uma dislexia estranha que só permitia que ele visualizasse
a primeira letra de cada palavra. Arnaldo estava cansado daquela situação, e
esperava ansiosamente pela cura definitiva, ainda que ela viesse em forma de
passagem para outra vida. Imaginava-se no paraíso, um lugar com árvores
frondosas, frutos maduros e uma biblioteca infinita, para que pudesse ler o que
quisesse na hora que bem entendesse.
Olhou para o lado e
viu uma pilha de livros sobre a pequena prateleira ao lado do leito. Tentou
esboçar uma leitura, mas novamente a dislexia estranha dava as cartas. Só as
primeiras letras de cada palavra não construíam nada, não faziam sentido, assim
como aquela sua situação digna de piedade.
Os pratos com as refeições servidos
pela copeira voltavam intactos, pois ele tinha perdido definitivamente a
vontade de viver. Foi quando uma brisa
gélida passou pela fresta da porta do quarto, que foi aberta por uma enfermeira
que ele nunca havia visto, cujos olhos eram muito mais piedosos do que os olhos
das outras enfermeiras que ele havia conhecido naquele lugar. Nas suas mãos,
não havia soro, nem seringas, nem qualquer outro tipo de medicamento. Ela
aproximou-se e ficou apertando suas mãos com serenidade. Os olhares se
cruzaram, e Arnaldo percebeu que a cura definitiva pudesse estar próxima.
A
enfermeira passou a olhá-lo como numa hipnose sedativa, cujo objetivo talvez
fosse acabar de de vez com o sofrimento do paciente. O homem em estado de
transe olhou para o crachá da enfermeira, tentando fazer uma última leitura antes
de sua inevitável viagem, e percebeu que ali estava escrito a palavra "MORTE". Constatando o fim daquela dislexia, fez a passagem para o outro lado da vida. Já no portal do paraíso, percebeu as árvores frondosas, os frutos maduros e a biblioteca
infinita que tanto havia almejado.
A bondosa mulher chorou
lágrimas de piedade e fechou com suas mãos os olhos do paciente para que ele
descansasse em paz. Em seu crachá, na realidade, estava escrito: Maria Ofélia Rocha Tavares. Enfermeira.
* O Eldoradense
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