2 de set. de 2020

Conto: "Seu Floriano e o pão crioulo" Parte l

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"Seu Floriano e o pão crioulo"


     Escrevo este conto verídico para reparar uma injustiça. Injustiça íntima cometida com o meu avô materno, seu Floriano, uma das minhas maiores referências afetivas da minha vida. Não, não é lá uma injustiça com "i maiúsculo", mas ela precisa ser reparada. Eu explico. Primeiro, eu preciso apresentar-lhes uma das principais características do meu avô, e só aí, amigo leitor, você vai entender o que eu estou dizendo.

     Seu Floriano era um homem simples, não alfabetizado, mas muito sábio. Porém, uma das suas marcas registradas era simplificar, por sua conta e risco, o nome de tudo o que ele considerava de difícil pronúncia ou até mesmo das coisas que ele não fazia questão de guardar na memória. Sendo assim, meu primo Abmael era por ele chamado de "Natanaéli", e o meu tio Ednaldo, era simplesmente "Aguinaldo". Às vezes eu tinha dúvidas se ele fazia isso por dificuldade ou por sacanagem mesmo. Contudo, era na mesa que a mania de simplificar nomes ganhava contornos ainda mais engraçados: Qualquer prato diferente ou com nome um pouco mais complicado era simplesmente rebaixado à condição de "balaio de gato". Não importa se era gastronomia italiana, árabe ou brasileira. Estrogonofe? Balaio de gato. Lazanha? Balaio de gato. Esfirra? Balaio de gato. E se ele percebesse que os netos achavam aquilo engraçado, até o arroz e feijão virava "balaio de gato".

      Eis que que em um dado momento dos últimos anos de sua vida, o apetite tornou-se raro. Desanimado, tinha pouca fome, e isso nos preocupava. Perguntávamos a todo o momento se ele queria comer algo, e era difícil quando ele tinha algum palpite ou sugestão. Quando isso acontecia,  teria que ser aproveitado de forma imediata, sem perder tempo, pois a vontade de comer poderia passar. E um dia, num destes raros momentos, ele me pediu:

      "O Fernando, o vô tá com vontade de comer pão crioulo! Você não busca pra mim, não?"

       Lógico que respondi que buscaria, embora nunca tivesse ouvido falar deste pão e achasse que este nome fosse mais uma invenção simplória do seu Floriano. Na época, ainda não tinha em mãos a facilidade da internet para me certificar da existência do tal pão, e então, eu chamei minha prima Thalita e disse:

        "Prima, o vô tá a fim de um tal pão crioulo. Nunca ouvi falar nisso, e eu acho que os padeiros também não! Por desencargo, eu vou pedir a informação, mas você vai comigo, pra gente passar vergonha juntos" . Ela riu, mas solidária, montou na garupa da moto.

      Padaria um. Cara de espanto do balconista. Padaria dois. Risada do balconista. Padaria três. Cara de desprezo do balconista. Padaria quatro. "Nunca ouvi falar!" Na décima padaria, eu estabeleci uma associação de pensamentos mais pautada no desespero que na racionalidade....

     "Isso pode ser um nome antigo. O pão crioulo pode ter a ver com a escravidão, que lembra surra, que lembra sova"...

       "Thalita, dane-se! Vou levar um pão sovado e ver o que acontece..."

(continua amanhã)


  * O Eldoradense

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