25 de set. de 2023

Conto: "Confissões"

 



 Padre Deocleciano havia feito uma homilia contundente, digna de elogios por parte do Bispo Homero. Com toda sua eloquência, argumentou com todas as forças contra a possível descriminalização do aborto, causando grande comoção nos fieis da igreja matriz da pequena e fictícia Bodocó do sul, situada na região da também fictícia Cactolândia. Há de se dizer aqui que tanto o padre quanto o Bispo são homens de caráter ilibado, que sempre agiram conforme suas convicções religiosas e que nem sob o olhar mais crítico e maldoso, possuíam desvio de conduta.

     No dia seguinte à homilia, um homem estranho aparece na igreja matriz, suplicando confissão. O padre então vai ao confessionário, e o pecador em questão, um forasteiro vindo de outro estado, começa a expor suas faltas, gravíssimas por sinal:

     Padre, eu cometi cinco estupros em três lugares diferentes em que morei. Todos eles seguidos por feminicídio e ocultação de cadáver, e por isso, até agora, sem esclarecimento para a justiça dos homens. E sinceramente, eles nunca me descobrirão, porque eu estou acima de qualquer suspeita e faço tudo muito bem feito. Porém, arrependido dos meus pecados, vim até o senhor pedir clemência e remissão.

    Ao ouvir aquilo, padre Deocleciano sentiu náuseas e uma ira nunca dantes sentida em sua alma. Surpreendeu-se em experimentar tais sensações, pois era um homem sereno diante de tudo. Mas, em toda a sua sabedoria, conteve-se e disse, gaguejando muito e incerto sobre sua indulgência:

     Considere-se perdoado pelos seus pecados, porém, saia daqui e não peques mais!

   O forasteiro, então, nada disse, mas seu semblante estava visivelmente aliviado. Semanas depois, uma mulher foi dada como desaparecida pela justiça de Bodocó do Sul. Outros desaparecimentos de mulheres jovens adultas ocorreram num raio de 50 km: Uma em Benguê, duas em Tira e põe e outras três em Cactolândia. Padre Deocleciano, em seu íntimo, suspeitava sobre quem estava por trás dos desaparecimentos.

     Não poderia denunciar o autor dos crimes à justiça, pois isso violaria as leis do direito canônico. Mas sua omissão íntima também contrastava com suas convicções inegociáveis pelo direito à vida. Viveu, por algumas semanas, um dilema cruel que consumiu sua alma.

    Até que um dia, fez o que achou mais correto: Procurou o delegado da pequena cidade para uma conversa a sós, sem as formalidades do boletim de ocorrência. Expôs suas suspeitas quase certeiras, baseadas na confissão do forasteiro. Posteriormente, a equipe de investigadores de Bodocó do Sul se colocou no encalço do psicopata. Em menos de um mês a prisão foi feita, mediante um flagrante arriscado, onde o forasteiro criminoso estava prestes a fazer mais uma vítima.

      Depois da denúncia e da prisão do meliante, os desaparecimentos de mulheres cessaram na região. Porém, numa crise de consciência por ter violado o direito canônico, Deocleciano foi se confessar com o Bispo Homero, na Diocese de Cactolândia. O Bispo, com toda sua sabedoria, disse ao subordinado sacerdote:

      Considera-te perdoado pelo teu pecado, mas para que sua remissão seja total, renegue ao sacerdócio e não vistas mais a batina, pois segundo o direito Canônico, com muita dor no coração, serei obrigado a excomungá-lo. E sinceramente, não é isso que eu quero fazer...

    Numa última homilia, o padre renunciou à batina e continuou defendendo o direito à vida, tanto sob a luz das leis de Deus, quanto sob a ótica das leis dos homens. Reencontrou sua paz soberana e íntima, e hoje leciona teologia numa universidade da capital...

 

       O Eldoradense


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