"A minha casa está onde está o meu coração... Ele muda, a minha casa, não! Porque sou apenas movimento, sou do mundo, sou do vento, nômade..."
Trecho da música "Nômade", do Skank...
Amigo leitor: Ainda que eu tenha classificado este texto como um "conto", entenda-o como um relato fidedigno de um "causo" que eu mesmo presenciei. Aconteceu anteontem, durante o pedal matinal que faço em dias de folga. Algo que pode ser considerado inusitado e que pode remeter os que têm mais sensibilidade a uma reflexão mínima sobre os diferentes conceitos de necessidades materiais, liberdade e conforto.
Vigésimo quilômetro de treino, o sol venceslauense dando o ar da graça, perto das nove da manhã, num final subida. No sentido contrário ao meu, adentrando a ciclovia, um homem, também de bicicleta, acena, num gesto claro de pedido de favor. Quando cheguei perto dele, o mesmo diz:
Por favor, me desculpe atrapalhar seu pedal. Preciso que o senhor me diga onde fica a bicicletaria mais próxima. Preciso comprar remendos para os pneus...
Antes de que eu desse a informação, foi inevitável a observação: A bicicleta precária, o homem com ar sofrido, desdentado, cabelos desegrenhados, vestes extremamente simples. Sobre a garupa da bicicleta, uma caixa de papelão na vertical, e dentro dela, um pote de margarina contendo ração, e ao lado do mesmo, um simpático cachorro caramelo "sem raça definida", aparentando ser muito bem tratado pelo seu dono. Atrás da garupa, um saco enorme de latinhas de bebidas e uma bandeira surrrada do Brasil, geralmente usada por quem faz cicloturismo.
Expliquei o caminho para a bicicletaria mais próxima, no centro da cidade. O homem agradeceu com a educação superior a de muitos homens bem vestidos que já conheci. A humildade contida na sua fala beirava a subserviência, porém, a distância do pedal que ele disse ter percorrido, demonstrava uma força interior descomunal: O personagem em questão vinha de Pernambuco, emendando uma segunda pergunta:
Compensa entrar aqui, ou seguir adiante, para a cidade mais próxima, sentido Mato Grosso do Sul?
Respondi que compensava entrar em Presidente Venceslau, e em resposta, recebi novo agradecimento e uma benção. Segui adiante mais cinco quilômetros, pensando naquela figura e fazendo questionamentos íntimos: Qual o destino final? Qual a história de vida? Seria mais um retirante nordestino à procura de boa sorte? Aventureiro? Turista? Encontraria a "bicicletaria do João" para comprar os tais remendos?
Com as indagações na cabeça, resolvi que retornaria ao centro para saber ao menos se ele obteve êxito em achar a bicicletaria. A vontade era de pegar o aparelho celular, bater um papo, perguntar um monte de coisas e publicar na rede social. Porém, a timidez e a sensação de invadir a privacidade alheia como recompensa por uma mera informação freou tais intenções.
Ao chegar perto do posto de saúde, lá estava o sujeito, conversando animadamente com uma outra pessoa, e eu perguntei se havia dado certo a compra dos remendos para os pneus. Ele respondeu alegre que havia ganho vinte remendos do João, que certamente se sensibilizou com as circunstâncias da viagem daquele homem. Agradeceu mais uma vez e me desejou "bom pedal", num educado e posterior "vai com Deus".
Terminei o treino e me arrependi por não ter sequer tentado esclarecer minhas indagações. Sabe-se lá qual a história de vida daquele homem, se procurava remendos apenas para os pneus da bicicleta, ou também para a alma. Há também a possibilidade de que seu sofrimento seja apenas aparente, e que ele seja um cara muito feliz com seu fiel escudeiro canino, liberdade e desprendimento. De todas as dúvidas, uma única certeza: A de que ele saiu com uma boa impressão de Presidente Venceslau, através das singelas colaborações para que seguisse seu destino...
* O Eldoradense
São pessoas assim que me ensinam mais que os mestres nas escolas.
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